Trecho introdutório do primeiro capítulo de um romance que estou escrevendo, de nome provisório Pergaminhos do Arcanjo. Aos trancos e barrancos, de quando em vez, escrevo mais uns trechos;
"Todo dia levantava de
madrugada, tomava uma garrafa de café quente, um banho frio e ia pro ponto de
ônibus; não apanhava o carro da primeira linha, aguardava o da segunda. Fazia
isso pra se encontrar com uma esguia e magra professora em vias de se
aposentar, com quem trocava uma conversa aos sussurros e muitos cigarros. Os
trinta anos que os separavam não parecia incomodá-los. Entrava porta adentro do
coletivo já xingando o motorista – reclamava de tudo e de todos; de sua boca
saiam palavras que nem num boteco de região portuária numa sexta-feira à noite
se ouviria. Era figura digna de nota. Sempre contava a história do seu
alcoolismo e de quando fomentava brigas homéricas nos botecos de defronte ao
terminal rodoviário – sempre saia na vantagem, mesmo tendo pouco mais de metro
e quarenta e cinco de altura. Baixinho ardido! Internou-se e foi internado diversas
vezes, mais de trinta e cinco pelas suas contas, em hospitais psiquiátricos e
clínicas de reabilitação para livrar-se do álcool – sem sucesso. Certa feita
pediu uma pinga antes do batente; olhou pro copo diante de si, ali parado
inocentemente sobre o balcão do boteco. Pensou um pensamento que nunca dividiu,
virou-se e nunca mais voltou, nem praquele nem pra qualquer outro boteco, bar,
birosca ou pocilga da cidade, ou de qualquer outro lugar. Parou de beber ali,
num átimo de segundo – sobraram-lhe as seqüelas, as tremedeiras, a insônia
crônica, a hipertensão. Foi dessa última que morreu. Não fosse a bebida, teria
morrido milionário – foi o melhor corretor de imóveis da cidade, por décadas.
Estava vivendo da aposentadoria; mas não reclamava, não do dinheiro minguado
nem do pouco que lhe restara em bens. A família havia se ido há muito. Guardava
a satisfação pessoal de poder morar numa casa sua, sem aluguel; era um
pensamento que se repetia sempre que notava que a cama de casal era grande
demais pra si. Dava de ombros e tentava achar um sono que lhe abandonara na mesma
época que uma companhia humana. Seu cão morrera havia mais de dois anos. Não
quis substituí-lo; preferiu estar só, embora soubesse que não estava de todo. Naquela
manhã em que morreu, apanhou a segunda linha do coletivo no ponto de sempre,
xingou o motorista que retribuiu a gentileza matinal, e seguiu pro centro. O
ônibus lotou, xingou novamente. Foi descer três pontos antes do ponto final.
Caminhou apressadamente até tomar uma ruela estreita. Seguiu por quarenta
metros até uma rua sem fim. Caminhou pela diminuta calçada, evitando os
paralelepípedos da via, e embora quisesse amaldiçoar que o progresso não
houvesse alcançado aquele pedaço velho da cidade, calou o pensamento e tapou a
boca. Os casebres antigos se repetiam num mesmo padrão, quebrado pela grande
construção do final da rua – um muro enorme e branco se impunha, e o que havia
detrás dele apenas um portão de metal, a que foram acrescidas chapas de latão,
dava acesso. A chave ele o trazia no bolso, anexado ao molho das suas. A
fechadura antiga sempre lhe dera trabalho, mas até o fim, jamais deixou de ir
até lá, toda terça-feira de manhã."
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