domingo, 20 de novembro de 2016

Livro

Trecho introdutório do primeiro capítulo de um romance que estou escrevendo, de nome provisório Pergaminhos do Arcanjo. Aos trancos e barrancos, de quando em vez, escrevo mais uns trechos;

"Todo dia levantava de madrugada, tomava uma garrafa de café quente, um banho frio e ia pro ponto de ônibus; não apanhava o carro da primeira linha, aguardava o da segunda. Fazia isso pra se encontrar com uma esguia e magra professora em vias de se aposentar, com quem trocava uma conversa aos sussurros e muitos cigarros. Os trinta anos que os separavam não parecia incomodá-los. Entrava porta adentro do coletivo já xingando o motorista – reclamava de tudo e de todos; de sua boca saiam palavras que nem num boteco de região portuária numa sexta-feira à noite se ouviria. Era figura digna de nota. Sempre contava a história do seu alcoolismo e de quando fomentava brigas homéricas nos botecos de defronte ao terminal rodoviário – sempre saia na vantagem, mesmo tendo pouco mais de metro e quarenta e cinco de altura. Baixinho ardido! Internou-se e foi internado diversas vezes, mais de trinta e cinco pelas suas contas, em hospitais psiquiátricos e clínicas de reabilitação para livrar-se do álcool – sem sucesso. Certa feita pediu uma pinga antes do batente; olhou pro copo diante de si, ali parado inocentemente sobre o balcão do boteco. Pensou um pensamento que nunca dividiu, virou-se e nunca mais voltou, nem praquele nem pra qualquer outro boteco, bar, birosca ou pocilga da cidade, ou de qualquer outro lugar. Parou de beber ali, num átimo de segundo – sobraram-lhe as seqüelas, as tremedeiras, a insônia crônica, a hipertensão. Foi dessa última que morreu. Não fosse a bebida, teria morrido milionário – foi o melhor corretor de imóveis da cidade, por décadas. Estava vivendo da aposentadoria; mas não reclamava, não do dinheiro minguado nem do pouco que lhe restara em bens. A família havia se ido há muito. Guardava a satisfação pessoal de poder morar numa casa sua, sem aluguel; era um pensamento que se repetia sempre que notava que a cama de casal era grande demais pra si. Dava de ombros e tentava achar um sono que lhe abandonara na mesma época que uma companhia humana. Seu cão morrera havia mais de dois anos. Não quis substituí-lo; preferiu estar só, embora soubesse que não estava de todo. Naquela manhã em que morreu, apanhou a segunda linha do coletivo no ponto de sempre, xingou o motorista que retribuiu a gentileza matinal, e seguiu pro centro. O ônibus lotou, xingou novamente. Foi descer três pontos antes do ponto final. Caminhou apressadamente até tomar uma ruela estreita. Seguiu por quarenta metros até uma rua sem fim. Caminhou pela diminuta calçada, evitando os paralelepípedos da via, e embora quisesse amaldiçoar que o progresso não houvesse alcançado aquele pedaço velho da cidade, calou o pensamento e tapou a boca. Os casebres antigos se repetiam num mesmo padrão, quebrado pela grande construção do final da rua – um muro enorme e branco se impunha, e o que havia detrás dele apenas um portão de metal, a que foram acrescidas chapas de latão, dava acesso. A chave ele o trazia no bolso, anexado ao molho das suas. A fechadura antiga sempre lhe dera trabalho, mas até o fim, jamais deixou de ir até lá, toda terça-feira de manhã."

Pançudo